Lei n.º 62/2007, art. 75.º n.º 4 b) - Constituem infracção disciplinar dos estudantes: A prática de actos de violência ou coacção física ou psicológica sobre outros estudantes, designadamente no quadro das «praxes académicas».

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A praxe não aprendeu nada com o Meco

5 de Outubro de 2018, Joana Mortágua
https://ionline.sapo.pt/628565?source=social


É impossível distinguir onde começa e acaba a violência de uma prática que atropela a dignidade humana com tanta bestialidade.

O lema resume tudo: “Dura praxis, sed praxis”. “A praxe é dura, mas é praxe”, gritam os “doutores” de capa e colher gigante na mão, qual cajado, enquanto “pastoreiam” grupos de caloiros e caloiras pelas praças das cidades universitárias deste país. Quando param, monta- -se um espetáculo com rasgos de auto-de-fé. E nem é preciso lembrar o caso do “tribunal de praxe” que mandou cortar o cabelo a uma aluna. Não é raro ver dezenas de jovens mais ou menos sujos, mais ou menos pintados, mais ou menos acorrentados uns aos outros que, sentados no chão de cabeça baixa, ouvem berraria coletiva de onde se soltam insultos e humilhações não raras vezes homofóbicas, não raras vezes racistas, não raras vezes machistas.

Haverá explicações históricas, políticas e ideológicas para que 73% dos portugueses reconheçam ter sido praxados no ensino superior, ao contrário dos restantes países, em que esse número não ultrapassa os 25%? Certamente, e não andaremos longe se falarmos do elitismo que marcou o acesso ao ensino universitário até tempos recentes e que ainda se reflete no imaginário de muitas famílias que só agora veem a primeira geração a estudar “para doutor”.

A verdade é que a sociedade tolera a praxe e consente num regime de exceção em que a dignidade e os direitos humanos não vigoram. A verdade é que em nenhuma outra instituição (pública, transparente e aberta, diga-se) se admite um sistema de poder paralelo hierarquizado entre a autoridade absoluta de uns e a humilhação servil de outros:

“O caloiro é incondicionalmente servil, obediente e resignado”; “não é um ser racional”; “não goza de qualquer direito”. “O caloiro é assexuado”, “deve ser sempre moderado no uso da palavra (zurra, grunhe, bale e relincha só quando lhe é dada permissão)”. “Não é permitido pensar, opinar, gesticular, buzinar, abanar as orelhas ou pôr-se em equilíbrio nas patas anteriores”, dizia o “manual de sobrevivência do caloiro distribuído no ano passado aos novos estudantes da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

Esse é o problema de todas as estratégias que têm sido assumidas para combater a “praxe violenta”. É impossível distinguir onde começa e acaba a violência de uma prática que atropela a dignidade humana com tanta bestialidade.

Continuamos a indignar-nos a cada morte, e já vamos em 12 nos últimos 14 anos. É esse o limite da praxe violenta, a morte? E os dois jovens que ficaram paraplégicos, ou a aluna que entrou em coma alcoólico depois de ter sido forçada a ingerir álcool? E os que este ano foram levados para a serra da Estrela para serem agredidos por “veteranos” da Universidade da Beira Interior?

Tendemos a classificar a praxe como “violenta” depois de as desgraças acontecerem. Até lá, “Dura praxis, sed praxis”.

Não importa discutir se a praxe é ou não tradição, até porque os direitos da nossa modernidade estão cheios de más tradições que acabaram. Importa reconhecer que “Dura praxis, sed praxis” tem tido de forma sistemática, continuada e resistente uma única tradução, “a praxe é violenta, mas é praxe”, a única que realmente existe.

É para acabar com essa violência que se exige uma política de tolerância zero, uma tarefa democrática da sociedade que nos toca a todos, mas em que as instituições de ensino superior e o governo têm a primeira responsabilidade.

Artigo publicado no jornal i, 4 de outubro de 2018.

publicado por contracorrente às 23:57

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